Arbitragem Como Meio de Justiça A Cláusula Comp. e a Desjudicialização da Solução de Conflitos

 
Thiago Moreira
O presente trabalho tem como objetivo expor os desafios da contemporaneidade lançados quando se trata das novas acepções da Justiça e de novos ou reformulados meios para sua efetividade e interpretação. Neste contexto, onde cada vez mais se precisa de instrumentos e institutos que sejam alternativos à jurisdição, surge a arbitragem, manifestada e realizada através da cláusula compromissória e do compromisso arbitral. Enfatizam-se algumas nuances da cláusula compromissória e de condicionantes à sua efetividade e seus princípios reitores, que fazem, deste meio alternativo à jurisdição, instituto que, se bem aplicado, pode ser fator primordial para saciar a sede de justiça da sociedade.
 
Abstract
This paper aims to discuss the challenges of contemporaneity arising when it comes to the new meanings of justice and of new or reformulated means for its execution and interpretation. In this context, in which institutes and instruments that are alternatives to jurisdiction become more and more necessary, arbitration rises up, as manifested and accomplished by the arbitration clause and the arbitration commitment. Emphasis is laid on certain nuances of the arbitration clause and of limitations to its effectiveness and guiding principles, which make of this alternative means to jurisdiction an institute that, if properly implemented, can be a key factor in quenching society’s thirst for justice.
 
Introdução
Se existe algo que permeia os pensamentos e anseios do ser humano de forma que beira a unanimidade é a Justiça e o desejo pela mesma. Este instituto, se é que assim podemos chamá-la, traz para o indivíduo uma sensação de completude, que o faz, como ser coletivo, alcançar em conjunto com seus pares a tão almejada paz social; para dar azo à paz social, é necessário que se faça justiça na medida em que seja possível, haja vista que lides, como pretensões resistidas, sempre existiram e enquanto houver subjetividades existirão, em maior ou menor grau, desde uma saudável discussão, que leva ao crescimento do indivíduo e do meio no qual vive, até uma disputa amarga, que pode ter um fim indesejado para o meio social. Ademais, não é uma característica da contemporaneidade a busca pela justiça, e para atender a necessidade de satisfazer esse grande anseio, de saciar essa sede de justiça, se faz imprescindível a aplicação de meios de justiça cada vez mais efetivos, sem perder a sobriedade.
Ao longo dos séculos, vêm sendo lançados desafios que se renovam e se avolumam, uma odisséia, que traz hoje aos cientistas jurídicos da contemporaneidade um árduo caminho na regência das situações que acometem a sociedade em relações a cada passo mais complexas, estrada que exige voluntariedade e proeza para efetivar o acesso à Justiça.
A Justiça necessitava, e ainda necessita, de formas cada vez mais dinâmicas para o alcance de seu objetivo: garantir a pacificação social, realizar novos meios de Justiça, ou até aperfeiçoar antigos moldes, deixando claro que o primordial é que se faça Justiça, pois é ela o fim a que almeja o indivíduo e a coletividade na qual está inserido.
Neste contexto hodierno, não mais se pode falar em processo como um fim em si mesmo, mas sim como meio. O Direito moderno deve abrir as portas a um novo paradigma, o processo tendo a pessoa 1como centro e fim do processo, e essa ideia se estendendo aos meios paraestatais. Apesar de nas cadeiras acadêmicas isto já estar relativamente divulgado, notamos que entre a teoria e a efetividade de tais premissas, que revelam a existência de meios paraestatais de solução de conflitos alternativos à jurisdição, existe um abismo que leva ao novo desafio de provocar mudanças de paradigmas, atitude imprescindível para trazer uma nova concepção do direito/garantia do acesso à justiça 2.
A justiça, se não for exposta em tempo, deixa de ser justiça, pois o tempo também é fator primordial para a mesma, assim da mesma forma que uma decisão injusta e célere é uma decisão justa fora de tempo. E é neste ínterim que surge a arbitragem como meio idôneo de Justiça, hábil para a pacificação social.
 
Acesso à Justiça ou ao Judiciário? Uma análise à luz do Princípio da Máxima Efetividade
Estamos em tempos de mudanças, não por mero capricho jurídico, mas por premente necessidade em face de um colapso de âmbito global, em que as formas tradicionais de obtenção de Justiça não são mais capazes de tornar reais as pretensões de paz social. Novas formas são necessárias e é neste cenário, que beira o caos, onde entram a arbitragem e outros meios alternativos de justiça, como a mediação, a conciliação, etc.
É neste diapasão que encontramos o desafio promovido para ampliação do direito de acesso à Justiça, de dar-lhe não só característica formal, por natureza abstrata e genérica, mas, também, ares de acesso à Justiça na acepção material, que leva em conta as subjetividades dos indivíduos que dele carecem, tal como ocorre com o direito à igualdade, que é entendido, em sua acepção formal, no sentido de não haver, em regra, distinções entre indivíduos, e material, pela máxima “tratar os iguais de forma igual e os desiguais na medida de suas desigualdades”, ou seja, onde as individualidades entram na balança da justiça e apresentam peso significativo para o equilíbrio da relação que se forma. Alguns doutrinadores aceitaram tal desafio, dos quais se destaca Mauro Cappelletti (2002). Em sua obra sobre o tema, traz sugestões que denomina de ondas, apresentando três delas renovatórias para a efetividade do direito de acesso à Justiça, sendo a primeira a assistência judiciária para os pobres, a segunda, a representação dos direitos difusos, e por fim a terceira que compreende uma nova concepção do acesso à Justiça. As duas primeiras ondas, de uma forma ou outra, já foram implantadas em nosso ordenamento, como no caso da assistência judiciária gratuita aos que demonstrarem insuficiência de recursos, na forma do artigo 5º, LXXIV, da Constituição de 1988, bem como o disposto na lei 1.060/50, materializando a primeira onda renovatória. Quanto à segunda onda, vislumbram-se institutos como, por exemplo, a ação popular e a ação civil pública. Entretanto, desafio maior é lançado quanto à terceira onda, onde se busca uma mudança de paradigmas, com vistas à nova concepção do entendimento do acesso à Justiça.
O acesso à Justiça é direito e garantia fundamental constante na Constituição de 1988, na interpretação de seu art. 5º, inciso XXXV, pelo qual “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Algumas ilações podem ser auferidas do exame deste dispositivo, quais sejam a inafastabilidade ou inarredabilidade do controle jurisdicional e o amplo acesso ao Judiciário, como verdadeiras garantias do Estado para preservação dos direitos inerentes à pessoa. Verifica-se que a intenção do legislador constituinte foi coibir qualquer forma de supressão do direito da pessoa, física ou jurídica, de ter seus direitos e afrontas aos mesmos analisados sob o crivo jurisdicional, com a finalidade de evitar arbitrariedades, injustiças e situações prejudiciais insanáveis.
Como norma constitucional de direito/garantia fundamental que é, deve ter sua interpretação revista sob o prisma de princípios interpretativos de normas constitucionais, sendo no caso em tela a interpretação com fulcro na máxima efetividade. Na lavra do constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho:
“Este princípio, também designado por princípio da eficiência ou princípio da interpretação efectiva, pode ser formulado da seguinte maneira: a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe dê. É um princípio operativo em relação a todas e quaisquer normas constitucionais, e embora a sua origem esteja ligada à tese da actualidade das normas programáticas (Thoma), é hoje sobretudo invocado no âmbito dos direitos fundamentais (no caso de dúvidas, deve preferir-se a interpretação que reconheça maior eficácia aos direitos fundamentais).” (CANOTILHO, 2003, p. 1224)
Não é outro o entendimento de doutrinadores brasileiros, como, por exemplo, Alexandre de Moraes 3, para quem “a uma norma constitucional deve ser atribuído o sentido que maior eficácia lhe conceda”, primando pela divulgação deste princípio da máxima efetividade que visa a mostrar e alcançar o mens legis (espírito da lei), que, no art. 5º, XXXV, trata da busca da Justiça e da consequente paz social.
Sendo a justiça a real intenção que se extrai da norma referida, forçoso dizer que, olhando o direito de aceso à Justiça com as lentes da eficiência das normas, e por que não dizer, dos princípios constitucionais, o modo mais amplo de tornar efetivo tal direito é através da implementação de meios idôneos de pacificação social, tal como a elaboração da Lei de Arbitragem (LA), 9.307/96, que não a instituiu, vez que tal instituto já existia em nosso ordenamento, porém lhe deu maior legalidade e legitimidade, como resposta estatal a um clamor incessante por justiça (da forma correta, com celeridade e qualidade).
Nota-se uma mudança de paradigmas, como já acima aludido, em que, repisa-se, o processo é meio de justiça, esta que não está adstrita ao direito positivo. Em face dessa mudança de paradigma e da reação pertinente ao desafio de mudá-lo, nota-se um esforço do meio jurídico, como um todo, para alcance do bem da vida e da paz social por meio justo, podendo-se demonstrar tal esforço através de exemplo recente, ainda que não esteja em vigência, das alterações propostas na nova codificação processual civil 4, em especial em seu artigo 3º, quando aduz que “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão a direito, ressalvados os litígios voluntariamente submetidos à solução arbitral, na forma da lei”. Note-se que estamos diante de uma nova interpretação do art. 5º, XXXV, da Carta Magna (“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”); a nova redação proposta para o CPC traz uma nova visão e interpretação da garantia de acesso à Justiça, consubstanciada como garantia fundamental constitucionalmente traçada na Carta Cidadã, sob o prisma do princípio da máxima efetividade das normas constitucionais. Ora, não seria razoável que uma norma constitucional de tamanha amplitude ficasse tolhida de efetividade em face de uma estrutura estatal que, por razões diversas, não está capacitada para dirimir todos os conflitos que perante ela são propostos, até mesmo pelo fato de que a Justiça não é exclusiva do Estado (exclusivo é o poder jurisdicional), mas é também inerente ao indivíduo. Ou seja: quando a norma constitucional aduz que não poderá a lei fazer com que determinada lide que, porventura, venha a eclodir, deixe de ser apreciada pelo poder judiciário, ela está dizendo que não cabe ao Estado-Legislador, nem a outro ente/ser qualquer, cercear o direito de petição do administrado/jurisdicionado, o que não implica dizer que as lides que existem, ou na iminência de existir ou apenas no campo das mínimas probabilidades, não possam, através de um acordo de vontades, livre e desimpedido de vícios, e desde que tratem de direitos disponíveis, ter sua apreciação desagregada do poder judiciário e dada a um árbitro, na forma pactuada, respeitando-se a ordem pública e os bons costumes.
 
A arbitragem no ordenamento brasileiro, a lei de arbitragem e sua constitucionalidade

Em um rápido olhar pela história e a linha temporal que dela se desdobra, notamos a arbitragem como instrumento utilizado tanto no plano interno dos Estados (ou ente que lhe faça as vezes), quanto nas suas relações internacionais (plano externo), desde momentos que remontam à Grécia Antiga 5, Império Romano, Idade Média, Revolução Francesa 6, até épocas mais próximas dentro do contexto nacional, como se verifica da Constituição do Império do Brasil, de 1824, bem como nas demais Constituições que a sucederam, culminando na atual, promulgada em 1988. Atualmente, pode-se conceituá-la como uma heterocomposição 7, ou seja, como uma técnica de solução de conflitos onde as partes conflitantes buscam em um terceiro, de sua confiança, solução amigável e imparcial do litígio, que deve tratar exclusivamente de direitos patrimoniais disponíveis 8, sendo, ainda, necessária a capacidade das partes de contratar (v. art. 1º, da Lei de Arbitragem, LA, lei 9.307/96), podendo as partes, inclusive, convencionar sobre a solução baseada em direito positivo ou equidade (v. art. 2, LA).
Diversas legislações pátrias fazem menção à arbitragem, como a lei 9.099/95, lei dos Juizados Especiais, que determina, nas disposições da seção concernente à esfera cível, a opção das partes de adotarem o juízo arbitral quando não obtida a conciliação (v. art. 21 e ss.); a lei 8.078/90, Código de Defesa do Consumidor, CDC, que torna nula de pleno direito a cláusula que, nos contratos de consumo, determina a utilização compulsória da arbitragem (v. art. 51, VII); o Código de Processo Civil, que atribui natureza de título executivo judicial à sentença proferida no âmbito do juízo arbitral (v. art. 475-N, IV); o Código Civil de 2002, onde há permissão legal para que se preste compromisso judicial ou extrajudicial para solução de litígios entre pessoas que possam contratar (v. art. 851 e ss.). Mas foi com a edição da lei 9.307/96, Lei de Arbitragem (LA), que tal meio de solução de controvérsias ganhou expressão e força, dando prestígio à autonomia da vontade, distinguindo cláusula compromissória de compromisso arbitral, e oferecendo estímulo à função conciliadora do árbitro, dentre outros aspectos.
Com o advento da referida LA, surgiram alguns questionamentos quanto à constitucionalidade de seus dispositivos, em especial o parágrafo único do art. 6º e o art. 7º, que violariam, nas palavras de quem alegava tal inconstitucionalidade, o princípio constitucional da inafastabilidade do judiciário. Entretanto, tal discussão já se encontra superada, haja vista que, de forma incidenter tantum, foi a lei julgada constitucional, espancando quaisquer dúvidas, como se pode inferir do teor de trecho da ementa do Agravo Regimental na Sentença Estrangeira nº 5.206-7 Reino da Espanha, proposto no Supremo Tribunal Federal abaixo colacionado:
“Lei de Arbitragem (L. 9.307/96): constitucionalidade, em tese, do juízo arbitral; discussão incidental de vários dos tópicos da nova lei, especialmente acerca da compatibilidade, ou não, entre a execução judicial específica para solução de futuros conflitos da cláusula compromissória e a garantia constitucional da universalidade da jurisdição do Poder Judiciário (CF, art. 5º, XXXV). Constitucionalidade declarada pelo plenário, considerando o Tribunal, por maioria dos votos, que a manifestação de vontade das partes na cláusula compromissória, quando da celebração do contrato, e a permissão legal dada ao juiz para que substitua a vontade da parte recalcitrante em firmar o compromisso, não ofendem o art. 5º, XXXV, da CF.” (grifo nosso)
Já dirimidas quaisquer dúvidas acerca da constitucionalidade da referida lei, para melhor embasarmos nosso posicionamento e seu desenrolar, faz-se necessária uma argumentação crítica do enquadramento jurídico que se atribui à arbitragem, ou melhor, na terminologia empregada para a mesma e sua errônea acepção. Ainda hoje, trata-se e conceitua-se a arbitragem como meio alternativo de solução de conflitos, em suma, como uma opção ao litigante de deixar de ter sua lide apreciada pelo ente estatal e submeter tal causa ao meio arbitral. Entretanto, o que se deve ressaltar na questão da denominação “meio alternativo” é a carga etimológica aplicada no conceito; ou seja, infelizmente, tem-se entendido, na acepção de grande parte de aplicadores do direito, alternativo no sentido de secundário, inferior, e não na real acepção da palavra, desprendida do preconceito originado por concepções judicializantes das lides, que proclama alternativo, como uma opção à jurisdição (que pode ser tão efetiva quanto), um meio diferente do convencional, não sendo, em razão disto, inferior ou menos eficaz que as outras opções que se apresentam.
A LA traz um leque de possibilidades 9 que, se bem empregadas, podem dar azo a mudanças imprescindíveis, em virtude de um período de crise judicial onde o Estado-Juiz não comporta o número cada vez mais crescente de processos interpostos, trazendo insatisfação a uma sociedade culturalmente demandista.
 

A cláusula compromissória como forma de desjudicialização da solução das lides
Antes de adentrarmos no tema da cláusula compromissória propriamente dita, devemos, inicialmente, dizer que a mesma é espécie do gênero convenção de arbitragem, sendo esta o acordo de vontades pelo qual as partes “se vinculam à solução de litígios determinados ou determináveis, presentes ou futuros, por meio de juízo arbitral, sendo derrogada, em relação aos mencionados litígios, a jurisdição estatal” 10, e que pode ser exercida por meio do compromisso arbitral e da cláusula compromissória, como espécies de convenção de arbitragem (v. art. 3, LA). Apesar do objetivo em comum das duas espécies aludidas, que é derrogar a competência do Estado-Juiz para que a lide seja apreciada por um juízo arbitral, distinguem-se, pois, a cláusula compromissória, que “é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato” (art. 4º, LA), e o compromisso arbitral, que “é a convenção através da qual as partes submetem um litígio à arbitragem de uma ou mais pessoas, podendo ser judicial ou extrajudicial” (art. 9, LA). Em suma, a cláusula compromissória é anterior à instalação da lide (pretensão resistida), e o compromisso arbitral ocorre quando tal lide já eclodiu.
Feita a introdução e conceituação necessárias, analisemos a cláusula compromissória como meio de promoção de justiça, podendo as partes contratantes optar pela celeridade inerente ao processo arbitral para qualquer causa que verse sobre o contrato realizado, bem como a possibilidade de escolha do meio e de quem terá competência, dentro dos limites legais, para decidir a causa que porventura surja.
Uma grande inovação apresentada pela LA foi a natureza jurídica atribuída à cláusula compromissória e a força coercitiva nela incorporada, em razão da natureza jurídica de contrato preliminar 11, o que implica dizer que, ao pactuar cláusula compromissória em contrato nos moldes legais, as partes pactuantes se obrigam a realizar o compromisso arbitral quando da eclosão de lide concernente a questões oriundas do contrato estabelecido. A força coercitiva acima aduzida se encontra positivada no art. 7º, LA, como forma de fazer valer o pactuado quanto à realização da arbitragem, pelo que, na existência de cláusula compromissória, pode a parte interessada acionar em juízo a parte recalcitrante, que se nega a realizar a arbitragem, através de tutela específica para ter a obrigação de fazer satisfeita, quando poderá o juiz, na sentença de natureza constitutiva, substituir a declaração de vontade da parte que se negou a celebrar o compromisso arbitral.
Para finalizar os aspectos gerais sobre a cláusula compromissória, explana-se que tal espécie de convenção de arbitragem possui duas modalidades, quais sejam, a cheia e a vazia, sendo a primeira a cláusula que já contém todos os elementos necessários à instauração do processo arbitral, e a segunda aquela em que tais elementos não se apresentam 12.
 
O princípio da autonomia da cláusula compromissória em nosso ordenamento e no direito comparado

Princípio intrinsecamente ligado à natureza de contrato preliminar da cláusula compromissória, a autonomia, estampada no art. 8º, LA, ocasiona a distinção do destino dado à mesma em relação ao negócio jurídico no qual está contida. Assim, eventuais nulidades que porventura possam surgir não autorizam nenhuma das partes a opor-se à arbitragem 13. Neste sentido, Guerrero (2009, p. 18) declara que “a resilição de um contrato não leva, necessariamente, à resilição da cláusula compromissória, possuindo, portanto, apenas ligação instrumental com o objeto do litígio”.
Como corolário deste princípio, o art. 8º, LA, em seu parágrafo único, traz o princípio da Kompetenz – kompetenz (competência – competência), pelo qual os árbitros têm competência para decidir sobre sua própria competência 14. A ligação entre os dois citados princípios é fundamental para a incolumidade da arbitragem diante da nulidade ou anulabilidade alegada durante a solução do conflito 15.
Esta inovação trazida pela LA encontra respaldo no direito comparado, do qual damos destaque às disposições do Código Civil de Quebec (Canadá), e em especial ao teor de seu art. 2642, com grande similitude ao implantado em nossa legislação arbitral, que em tradução livre 16 diz: “um acordo de arbitragem constante em um contrato é considerado um acordo separado das demais cláusulas do contrato, e a apuração da nulidade do contrato feita pelos árbitros não implica na nulidade do acordo de arbitragem”.
Nas lições de Guerrero (2009, p. 18-19):
“A estrutura legal foi inteligente a ponto de impedir que simples alegações de nulidade ou anulabilidade da cláusula pudessem afastar a competência dos árbitros para análise da regularidade da manifestação das partes acerca da arbitragem. De outro lado, tal disposição legal exige que as partes estejam atentas quanto à resilição de contrato que contenha cláusula compromissória, tendo em vista a condição autônoma da cláusula compromissória em relação ao contrato que a contenha.”
 

A cláusula compromissória nos contratos de adesão

Ao se tratar de cláusulas compromissórias estabelecidas em contrato de adesão, verifica-se na LA um tratamento diferenciado, até mesmo pela singularidade que é própria desta espécie de contrato. Contratos de adesão são aqueles celebrados mediante aceitação, por uma das partes, das cláusulas e condições imposta pela outra, sem prévia e exaustiva negociação 17 por ambas as partes a respeito dos elementos que os compõem. Sobre os mesmos, Pablo Stolze e Pamplona Filho (2009, p. 128, vol. II, tomo 1) apresentam quatro traços característicos, quais sejam, uniformidade, predeterminação unilateral, rigidez, e, por fim, posição de vantagem de uma das partes. Dentre estas, destacamos a rigidez, pois, se assim não fosse, podendo haver discussão das cláusulas referentes ao contrato de adesão, o mesmo restaria descaracterizado; ou seja, é da natureza desse contrato ser rígido e impor a um dos pactuantes as cláusulas que foram preestabelecidas pelo outro, não havendo margem para discussão destas.
Como acima afirmado, coube à LA reger a inserção da cláusula compromissória nos contratos de adesão, em razão de suas características também já acima aludidas. Assim, determinou a LA, através de suas disposições, que nos contratos de adesão a cláusula compromissória só tem eficácia “se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula” (v. art. 4º, § 2º, LA).
Tal peculiaridade de trato se deve à relação de hipossuficiência que se verifica nesses contratos, com cláusulas preestabelecidas e impostas sem possibilidade de negociação. O destaque, que podem se inserto em negrito no contrato ou constar de documento anexo, faz com que, em tese, o policitante (aquele que adere ao contrato) tenha clara ciência de que submeterá a arbitragem qualquer causa que versar sobre o contrato elaborado pelo oblato (aquele que confeccionou o contrato de adesão). Entretanto, sobre a proteção que se pretende alcançar com as referidas disposições, importante colacionar o posicionamento de Guerrero (2009, p. 17):
“A ausência de proteção ao aderente decorre do fato de que, mesmo com cuidados e destaques, o aderente pode simplesmente não conhecer as consequências desta cláusula aderindo a ela sem qualquer reflexão. A disposição legal ora comentada, definitivamente, não é capaz de proteger o aderente.” (grifo nosso)
Existe, porém, uma outra peculiaridade que não poderia ser deixada de lado: não basta somente que sejam obedecidos os requisitos do art. 4º, §2º, LA, dever-se-á observar também a natureza da relação contratual que está sendo pactuada. Dito de outra forma: é necessário verificar se se trata de relação contratual de consumo (regida pelo CDC – Código de Defesa do Consumidor, lei 8.078/90), haja vista que, quando se trata de relações de consumo, a inteligência do art. 51, inciso VII, CDC, declara nulas de pleno direito as cláusulas que instituem compulsoriamente a utilização da arbitragem. Todavia, existem divergências tanto na doutrina quanto na jurisprudência a esse respeito. De um lado, há os que acreditam que a LA revogou o art. 51, VII, CDC, por não ter incluído em seu regime jurídico específico sobre o juízo arbitral, entendendo estarem bem acautelados os direitos do aderente nas disposições do § 2º, art. 4º, LA. De outro lado, existem entendimentos que defendem a manutenção da vigência do referido artigo do CDC, ponderando que a legislação arbitral se refere apenas aos contratos de adesão, que não são sinônimo de contratos de consumo, “até mesmo porque, no campo de tutela do consumidor, muitos contratos não se configuram como de adesão” 18.
No nosso entender, em razão da natureza e da finalidade da legislação especializada que visa tutelar os direitos do consumidor, não há motivos para que se veja a revogação tácita do inciso VII, art. 51, CDC, onde, em critério de solução de antinomias, notadamente o da especialidade, a norma especial prevalece sobre a geral, justamente o que se verifica no caso em tela.
Para fim de ilustração da ainda atual divergência sobre qual diploma legal deve ser aplicado, traz-se à colação dois julgados recentes oriundos do Egrégio Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, sendo o primeiro a favor da manutenção da aplicação do art. 51, VII, CDC, e o segundo desfavorável:
“APELAÇÃO CÍVEL.  COMPRA E VENDA DE IMÓVEL.  VILA DO PAN 2007.  PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA DO JUÍZO AFASTADA. CLÁUSULA DE ARBITRAGEM. CONTRATO DE ADESÃO.  NULIDADE.  CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. Promessa de compra e venda de bem imóvel. Relação de consumo firmada no contrato típico de adesão, incidindo o disposto no inciso VII, do artigo 51, o qual reconhece ser nula de pleno direito as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que determinem a utilização compulsória de arbitragem. RECURSO DESPROVIDO.” 19
“Direito Civil. Contrato de compra e venda de imóvel. Cláusula compromissória de arbitragem em contrato de adesão. Necessária observância da Lei de Arbitragem. Sentença. Extinção do feito sem resolução do mérito. Aplicação do art. 267, VII, Código de Processo Civil. Recurso. Descabimento. Precedentes do Superior Tribunal de Justiça. “Oportuno registrar que, ainda que se tratasse de contrato de adesão, a cláusula compromissória, no presente contrato, se apresentaria de maneira válida. Ela está em destaque, em negrito e com visto das partes…” (STJ, Ag.  Instr.  nº  1.159.653-DF  (2009/0035196-8), rel. Min. Aldir Passarinho Junior, decisão em 19/05/2010, DJe 26/05/2010). […]”  20
Nota-se, com este simples e atual exemplo, que muitos desafios ainda permanecem, fazendo com que o cientista jurídico tenha de buscar, ao longo do processo interpretativo, a forma mais adequada de dirimir o conflito que lhe é exposto.
 

Conclusão
No presente século, vivemos momentos que se revelam como fruto, por óbvio, do século passado, em que se vislumbrava uma grande mudança de paradigmas. Como bem destaca o historiador Eric J. Hobsbawn 21, “o breve século XX” foi um período marcado por expressivos extremos, da paz à guerra, de avanços econômicos a crises que beiraram o caos mundial, de grandes ditaduras à formação de Estados democráticos, tudo vivido em meio à neblina que se formava pela incerteza e expectativa pelos dias que viriam.
Principalmente neste nosso século XXI, vemos que algumas experiências desastrosas do passado não podem repetir-se, almejando-se segurança e sentimento de tranquilidade, no que tange à proteção e efetivação de direitos conquistados por caro preço. Não é diferente no plano jurídico e na relação Estado-jurisdicionado, onde se busca do Estado meios que garantam tutela efetiva e idônea, para dirimir de forma justa quaisquer conflitos que, porventura, surjam nas relações intersubjetivas. Com a tarefa de proporcionar os meios necessários para ofertar a pacificação social, vários juristas e legisladores lançaram mão de teorias que elaboraram novos meios ou trouxeram novamente à tona meios alternativos à jurisdição.
Neste contexto, em especial no ordenamento jurídico brasileiro, destaca-se a lei de Arbitragem 9.307/96, que, com já dito, não instituiu a arbitragem, porém, forneceu meios idôneos para sua efetivação. Inovações foram acrescentadas, dando-se por exemplo força coercitiva à cláusula compromissória, e outorgando tutela específica para realização da arbitragem, quando da resistência indevida da parte que a tal cláusula anuiu.
Não se pode deixar de arguir que o instituto da arbitragem não é uma panaceia, ou seja, não se trata de meio miraculoso para promoção da paz social. Nem caberia pensar dessa forma, pois, tal como este meio de solução de conflitos, nosso sistema jurisdicional e demais meios alternativos à jurisdição, devem todos sempre sofrer constante reformulação, haja vista que, como formas de solução de lides e manutenção da paz que são, devem sempre estar em sintonia com as mudanças sociais cada vez mais crescentes.
Espera-se que este texto tenha contribuído para esclarecer algumas dúvidas, e talvez, até mesmo, levantar outras, tudo para colaborar na criação de uma cultura arbitral que, como tal, só se verifica quando a mudança, no decurso do tempo, promove uma reavaliação da consciência social, atualmente demandista. Havendo culturalmente a aceitação da arbitragem, poder-se-á vislumbrar a utilização da jurisdição estatal em ultima ratio, em hipóteses que não sejam alcançadas por meios alternativos de solução de controvérsias, ou que por eles não puderam ser resolvidas.
Não será a imposição, mas a mudança de posturas culturais, que dará a melhor promoção à arbitragem e demais meios de pacificação social.
 
Thiago Moreira égraduando em Direito pela Universidade Presidente Antônio Carlos – UNIPAC/MG, e estagiário do Ministério Público do Estado de Minas Gerais, junto à 5ª Promotoria da Comarca de Juiz de Fora/MG.
 
1.   Preferimos nomear a pessoa como fim do processo, por ser termo mais amplo, que abrange a pessoa física e jurídica, já que ambas podem ser sujeitos na busca por Justiça efetiva.
2.   Nesse sentido, ver, para uma melhor análise do conceito e dos novos desafios da contemporaneidade quanto ao acesso à justiça, CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
3.   MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24.ed. são Paulo: Atlas, 2009, p. 15.
4.   BRASIL, Senado. Anteprojeto do Novo CPC. Disponível em: http://www.senado.gov.br/senado/novo cpc/pdf/Anteprojeto.pdf. Acesso: 11/07/11.
5.   Para uma melhor compreensão do tema da arbitragem e sua utilização no decurso do tempo, ver, por todos, LEMOS, Luciano Braga; LEMOS, Rodrigo Braga. A arbitragem e o Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
6.   Dentre os vários frutos que a Revolução Francesa gerou, destacamos o aludido por Braga Lemos (2003, p. 35): “os decretos de 16 e 24/8/1791 qualificam a arbitragem entre particulares como o ‘meio mais razoável de terminar uma contestação entre cidadãos’ e, acrescentam, ‘os legisladores não poderão baixar nenhuma disposição que tende a diminuir, seja o favor, seja a eficácia do compromisso”.
7.   DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 13.ed. Salvador: 2011, p.105, vol. 1.
8.   Nesse sentido, aduz o Código Civil Francês (Code Napoléon): “Art. 2059 – Toutes les personnes peuvent faire des conventions d’arbitrage relatifs aux droits de laquelle ils ont la libre disposition. Art. 2060 – On ne peut pas conclure des accords d’arbitrage en matière d’état et la capacité des personnes, dans celles relatives à divorce et séparation judiciaire ou sur les controverses concernant les organismes et institutions publics et plus généralement dans tous les affaires dans lesquelles la politique publique est concernée”, que, em tradução livre, “Art. 2059 – Todas as pessoas podem fazer convenções de arbitragem relativas aos direitos de que tenham livre disposição. Art. 2060 – Não se pode concluir acordos de arbitragem em matéria de estado e da capacidade das pessoas, naquelas relativas a divórcio e separação judicial, ou nas controvérsias que digam respeito aos organismos e instituições públicas e, de forma mais geral, em todos os casos que digam respeito à política pública.”
9.   Pablo Stolze e Pamplona Filho trazem a lume em sua obra alguns pontos positivos da arbitragem, dentre os quais destacamos a celeridade, a informalidade do procedimento, a confiabilidade e a flexibilidade. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo.  Novo Curso de Direito Civil – Obrigações. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 216 – 218, vol. II.
10. GUERRERO, Luis Fernando. Convenção de Arbitragem e Processo Arbitral. São Paulo: Atlas,  2009, p. 5.
11. Nas lições de Stolze e Pamplona Filho, define-se contrato preliminar como “uma avença através da qual as partes em favor de uma ou mais delas a faculdade de exigir o cumprimento de um contrato apenas projetado. Trata-se, portanto, de um negócio jurídico que tem por objeto a obrigação de fazer um contrato definitivo. GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Contratos: Teoria Geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 148, vol. IV, tomo 1.
12. CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem Lei nº 9.307/96. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 31.
13. GAIO JUNIOR, Antônio Pereira. Instituições de Direito Processual Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011, p. 870.
14. GAIO JUNIOR, p. loc. cit.
15. GUERRERO, op. cit., p.19.
16. Aduz da seguinte forma o texto original do art. 2642: “an arbitration agreement contained in a contract is considered to be an agreement separate from the other clauses of the contract and the ascertainment by the arbitrators that the contract is null does not entail the nullity of the arbitration agreement”.
17. MATIELLO, Fabrício Zamprogna. Código Civil Comentado. 2. ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 284.
18. LEMOS, op. cit., p. 76.
19. TJRJ, Agravo de Instrumento nº 0067452-76.2010.8.19.0000, 2ª Câmara Cível, Rel. Des. Elisabete Filizzola, julgado em 02/02/2011.
20. TJRJ, Apelação Cível nº 0322036-09.2010.8.19.0001, 6ª Câmara Cível, Rel. Des. Nagib Slaibi, julgado em 13/04/2011.
21. Para melhor entender o panorama mundial vivenciado no século XX e de valorosas observações feitas pelo referido historiador, veja, HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos – o breve século XX, 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
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Bibliografia
CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem Lei nº 9.307/96. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009.
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. Almedina: Coimbra, 2003.
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Tradução Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2002.
DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil. 13.ed. Salvador: 2011, vol. 1.
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo.  Novo Curso de Direito Civil – Obrigações. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, vol. II.
______. Novo Curso de Direito Civil – Contratos: Teoria Geral. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, vol. IV, tomo 1.
GAIO JUNIOR, Antônio Pereira. Instituições de Direito Processual Civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
GUERRERO, Luis Fernando. Convenção de Arbitragem e Processo Arbitral. São Paulo: Atlas, 2009.
HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos – o breve século XX, 1914-1991. 2. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.
LEMOS, Luciano Braga; LEMOS, Rodrigo Braga. A arbitragem e o Direito. Belo Horizonte: Mandamentos, 2003.
MATIELLO, Fabrício Zamprogna. Código Civil Comentado. 2. ed. São Paulo: LTr, 2005.
MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 24.ed. são Paulo: Atlas, 2009.
 
Fonte: Direitoaoponto.com.br

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