O Terceiro no Processo Arbitral

Hermes Marcelo Huck
 
Ao tratar da arbitragem, é medida de prudência do advogado, do árbitro e do jurista, interessados no tema, refletir sobre os limites desse procedimento. Com o notável incremento no número de processos arbitrais que vemos no Brasil dos últimos tempos, ter presente a extensão jurisdicional dos árbitros é cuidado essencial. Não raras vezes a solução de uma pendência entre duas partes atinge terceiros, de tal sorte que a sentença arbitral pode vir a impactar partes alheias ao procedimento arbitral, ao compromisso que lhe deu origem e mesmo ao negócio de onde nasceu a divergência. Uma arbitragem que se proponha a decidir sobre o exercício de poder de voto numa determinada sociedade faz com que o direito concedido ou reconhecido pela sentença arbitral possa implicar efeitos e consequências sobre outras sociedades por ela controladas ou das quais ela participa.
O que se discute são os limites da jurisdição arbitral, voluntária por essência. Até onde será admissível conformar-se com a ineficácia de uma decisão arbitral, posto que, para sua execução, poderão ser atingidas partes que dela não participaram. Esse limite essencial tem frustrado árbitros e juristas que, muita vez, inebriados com o sucesso do procedimento arbitral, não se conformam em constatar a inaplicabilidade da sentença erga omnes.
A extensão da convenção arbitral a terceiros que a ela não aderiram, mas que podem ser atingidos pela sentença dela proveniente, nos remete inexoravelmente ao tema da natureza da arbitragem. Não se desenterre aqui a vetusta discussão sobre a natureza jurisdicional (ou não) do instituto. Praticamente desapareceram da doutrina dúvidas quanto à nítida inserção privada da arbitragem no monopólio da justiça estatal. O artigo 31 da lei brasileira de arbitragem consagra que a sentença arbitral produz entre as partes (e seus sucessores) os mesmos efeitos da sentença judicial, constituindo-se em título executivo judicial.
Essa condição jurisdicional, entretanto, nasce de um contrato. A solução arbitral, ainda nos termos da lei brasileira (artigo 1º, da Lei nº 9307, de 1996), é admissível tão somente para as pessoas capazes de contratar. Vale dizer que a arbitragem é jurisdição que tem origem e é limitada por um contrato. Nasce da vontade contratual e transforma-se em jurisdição para aqueles que firmaram o contrato: uma jurisdição consensual. Portanto, como regra geral, a jurisdição dos árbitros não pode exceder o limite das vontades das partes, vontades essas expressas e definidas na convenção arbitral, ou mais especificamente, no compromisso de arbitragem.
A regra geral restringe a arbitragem às partes abrangidas pela convenção (ou pelo compromisso) arbitral. A exceção legal, permitindo a extensão da sentença arbitral a terceiros, encontra-se no mencionado artigo 31 da Lei de Arbitragem que obriga os sucessores das partes à sentença que decorrer do procedimento arbitral. A extensão da sentença é uma decorrência dessa sucessão.
A inclusão de terceiros estranhos na arbitragem: Precedentes jurisprudenciais
Neste passo, é de se indagar como se procederá quando a própria arbitragem, para sua continuidade, dependa da integração de terceiros ao processo, ou mesmo a eficácia da sentença que os árbitros prolataram somente irá ocorrer se atingir a terceiros que não firmaram a convenção arbitral e mesmo não participaram do processo. Muito embora a jurisdição arbitral seja reconhecida, regulada e ratificada pelo direito positivo brasileiro, é incipiente a jurisprudência sobre a matéria. Somente nos anos mais recentes um maior volume de decisões arbitrais vem sendo divulgado, bem como o Judiciário chamado a decidir sobre temas de execução e nulidade de sentenças arbitrais. Necessário, portanto, buscar-se auxílio nos precedentes estrangeiros, seja na jurisprudência arbitral, quando divulgada, seja nas decisões adotadas por tribunais no exterior.
Prolatada na década de 80 do século passado, a sentença que julgou o caso CCI 4131 (Isover Saint Gobain vs. Dow Chemical) inaugurou importante tendência. A sentença em si já é um interessante modelo para estudo1. Os árbitros que integraram aquele Tribunal Arbitral, a saber, Berthold Goldman, Michel Vasseur e Pieter Sanders, são notáveis estudiosos do Direito e mais especialmente da Arbitragem Internacional; o primeiro, reconhecido como o precursor e teórico da chamada Nova Lex Mercatoria, o segundo, renomado especialista francês do Direito dos Negócios, e Sanders, professor holandês que, desde os anos 70, vem coletando e comentando decisões arbitrais, detinham reconhecida competência para dar credibilidade ao leading case.
Naquele caso, determinadas empresas controladas – direta ou indiretamente – pela Dow Chemical haviam firmado contrato de distribuição na França de produtos por elas manufaturados. Os distribuidores franceses de tais produtos uniram-se numa joint venture que operava sob a denominação de Isover Saint Gobain. Por determinados motivos pouco relevantes para o tema aqui em discussão, surgiram divergências no curso da operação comercial. Nos termos do contrato, a Dow Chemical, como parte, juntamente com suas controladas, solicitou a instalação do procedimento arbitral. A requerida, Isover Saint Gobain, impugnou a participação da Dow Chemical na arbitragem, sob a alegação de que esta não firmara o contrato de representação e, consequentemente, a cláusula compromissória.
Em última análise, a despeito de sempre citado, o caso não extrapolou revolucionariamente os limites do compromisso arbitral. Se, de um lado, admitiu a extensão da sentença arbitral à parte que não participara diretamente do contrato, pois decidiu pela legitimidade da Dow Chemical como requerente, de outro, justificou essa abrangência pelo fato de constituírem aquelas requerentes verdadeiro grupo de empresas e, mais do que isso, por terem participado da formação dos contratos, negociado diretamente suas cláusulas, ainda que, no final, não os tenham formalmente integrado como partes.
O precedente jurisprudencial admitiu a extensão da sentença a todas as empresas, ainda que estranhas aos contratos, em decorrência “de seu papel na conclusão, na execução ou na rescisão dos contratos que continham tais cláusulas e de conformidade com a intenção mútua de todas as partes do processo, e (tais sociedades) aparentam terem sido verdadeiras partes dos contratos ou terem sido especialmente abrangidas por eles e pelas pendências deles decorrentes”2.
Na interpretação feita pela sentença, o Tribunal aceitou a distinção formal entre partes que firmaram e partes que não firmaram a cláusula arbitral, mas entendeu haver no negócio uma realidade econômica única. A Dow Chemical havia participado da discussão e da elaboração dos contratos que se punham perante a jurisdição arbitral. Mais do que isso, colaborara diretamente em sua execução, inclusive produzindo os bens objeto da representação contratada. Era, portanto, aceitável sua participação direta no processo arbitral. Inconformada, a Isover Saint Gobain recorreu à Corte de Apelação de Paris, que veio confirmar a decisão do Tribunal Arbitral, estendendo os efeitos da cláusula compromissória à Dow Chemical, que não a tinha originalmente firmado.
No direito norte-americano, para que um terceiro seja obrigado a participar da arbitragem, deve ficar clara sua participação, ainda que indiretamente, da execução do contrato e que, quando de sua negociação, não se tenha oposto à jurisdição arbitral. A recusa de um terceiro a participar do processo (ou a negativa pelo Tribunal Arbitral de admitir um terceiro ao processo) será solucionada pelo Poder Judiciário. Nesse aspecto, aos árbitros falta jurisdição para decidir.
De uma análise da jurisprudência disponível nas câmaras arbitrais internacionais, particularmente da CCI, bem como das decisões de tribunais estrangeiros quando sentenciam sobre a extensão da convenção arbitral a terceiros que dela não participaram, pode-se concluir por uma tendência média na admissão dessa extensão (a) quando o terceiro tenha tido uma participação ativa nas negociações do contrato que originou a arbitragem e (b) tenha envolvimento direto, de forma ativa ou passiva, na execução do contrato ou do negócio que se discute perante o Tribunal Arbitral.
A extensão da jurisdição arbitral e o direito brasileiro
Desfiando essa linha de raciocínio contra o pano de fundo do direito brasileiro, é caso de se indagar até onde a extensão de jurisdição arbitral poderia ser aplicada ao grupo de sociedades previsto em nossa legislação. O tema exige certa cautela. Desde logo, o grupo, nos termos da Lei das Sociedades Anônimas3, deverá sê-lo de direito, ou seja, aquele constituído por contrato. Não basta apenas o grupo de fato, decorrente da conjunta atuação econômica e empresarial das sociedades. A realidade econômica do grupo de empresas não é suficiente se não houver sua consolidação jurídica, através da relação contratual, conforme exigência da lei. A partir dessa interpretação, a decisão adotada pelo Tribunal Arbitral e ratificada pela Justiça francesa no caso Dow Chemical, fundada no grupo econômico de fato, não teria amparo no direito brasileiro.
Para fundamentar com solidez a extensão da jurisdição arbitral a terceiros, além da comprovação da existência contratual do grupo de empresas, o caso concreto deverá revelar a efetiva participação do terceiro na relação negocial – na contratação e/ou na execução – a ser submetida ao Tribunal Arbitral.
Se o grupo de sociedades é uma realidade concreta, há outras situações, também freqüentes, em que o Tribunal Arbitral se vê frente à necessidade de trazer outras partes para a arbitragem, sob pena de produzir uma sentença inócua, posto que insuscetível de atingir parte estranha ao procedimento arbitral, mas cujo cumprimento do decisum torna-se essencial para dar efetividade à sentença. Recordem-se, por exemplo, os casos em que o integral cumprimento de determinada sentença arbitral depende de atos ou omissões de subsidiárias, controladas, controladoras – quando não há grupo de sociedades de direito – diretores, acionistas, sócios, partes, enfim, que não tenham participado diretamente do contrato ou integrado a convenção arbitral.
O procedimento judicial, em determinadas circunstâncias processuais, impõe o litisconsórcio necessário, regulado pelo artigo 47 do Código de Processo Civil. O juiz deve decidir a lide de maneira uniforme para todas as partes e tem o poder de determinar a inclusão no processo de todos quantos possam vir a ser atingidos pela decisão final. A não instauração do litisconsórcio necessário induz à nulidade, como consequência.
Na arbitragem admite-se o litisconsórcio, seja ele ativo ou passivo. Deve, porém, vir previsto desde o momento do compromisso arbitral. Se o litisconsorte necessário recusa-se a integrar o procedimento arbitral e submeter-se a essa jurisdição, o árbitro não tem o poder do juiz para determinar sua inclusão no processo, sob a pena de nulidade. A jurisdição arbitral não atinge a terceiros para além do compromisso. Decidindo o Tribunal Arbitral pela existência do litisconsórcio necessário e ante a recusa do litisconsorte em participar do processo arbitral (ou das partes em admiti-lo), os árbitros, agindo nos estritos limites da lei, deverão determinar o fim da arbitragem.
Cogita-se igualmente sobre a extensão da arbitragem a estranhos ao processo nos embargos de terceiro. O tema versa sobre a possibilidade de o terceiro interferir no procedimento arbitral para defender seus direitos, mormente se houver oposição de qualquer das partes a essa participação externa. O direito italiano permite os embargos de terceiro no curso do procedimento arbitral, ou seja, antes da execução judicial da sentença que possa atingir seus bens ou direitos. É uma forma de economia processual, abrindo para o Tribunal Arbitral a possibilidade de decidir sobre tal ingresso, evitando a prolação de sentença que possa atingir bens de estranhos, não vinculados ao compromisso arbitral.
O direito brasileiro não contempla essa possibilidade. A natureza consensual e privada da arbitragem permite às partes que recusem intervenção estranha no processo. De outro lado, essa mesma natureza indica que, em havendo anuência das partes integrantes da arbitragem, nenhum óbice se oporá a que terceiro apareça como embargante na arbitragem. Nessa hipótese, o terceiro deverá submeter-se formalmente ao compromisso arbitral, e sujeitar-se à decisão do Tribunal, com todo seu alcance e consequências.
A recusa de umas das partes na arbitragem em aceitar os embargos de terceiro cria para os processualistas um problema prático adicional. A sentença arbitral não depende de homologação judicial para sua execução. Inadmitido na arbitragem, ao terceiro restará o procedimento judicial ordinário para proteger direitos que veja ameaçados pela decisão arbitral.
Os grupos de contratos trazem semelhante preocupação para a arbitragem. Com frequência, vários contratos são enfeixados numa relação negocial única. São os casos em que duas ou mais partes ajustam contratos de negociação e execução complexas, envolvendo a participação direta ou indireta de terceiros, cujas prestações futuras são essenciais ao bom termo do negócio, sem que tais terceiros firmem todos os contratos. No contrato principal, há a cláusula compromissória e, em determinadas situações, tal cláusula não é inserida nos ajustes ancilares. Surgida a pendência, as partes comprometidas com a arbitragem vão a ela, mas percebem que a decisão do Tribunal Arbitral não terá utilidade se não atingir a um determinado terceiro, parte de um dos contratos anexos do qual não constou a cláusula arbitral.
Ainda que intimamente inter-relacionados e interdependentes os contratos, esses vínculos não substituem a cláusula de arbitragem. A parte que a ela não tenha se submetido não pode ser forçada a integrar o processo, se entender dele não participar. Contra todos os argumentos de bom senso e economia processual, seria correr um imenso risco de nulidade levar o procedimento adiante, à revelia desse terceiro.
A prudência necessária para definir os limites da arbitragem
As situações limítrofes aqui lembradas, de um lado, e o indubitável ganho de credibilidade das soluções arbitrais nos tempos mais recentes, de outro, têm levado defensores mais aguerridos da arbitragem a admitir a obrigatória submissão desses terceiros ao Tribunal Arbitral. Estender a arbitragem além do compromisso é imprudência. Fora dos limites da lei, essa abrangência – ainda que pragmaticamente aconselhável – traz consigo o perigo da nulidade. Quanto mais e melhor disseminada a solução arbitral, mormente num país como o Brasil, dotado de uma histórica tradição voltada para as demandas judiciais, ao lado da quase-obrigação imposta ao advogado de levar o processo tão longe quanto possível, especialmente quando o direito de seu cliente é frágil, mais recursos haverá ao Judiciário contra as sentenças arbitrais, quando mais não seja, para retardar seu cumprimento.
O preço a pagar pelo relativo noviciado brasileiro com a experiência arbitral tem sido o recurso dos derrotados ao Judiciário, ainda que sem fundamentos ou argumentos. No mais das vezes, o que se tem buscado é ganhar tempo, adiando a execução da sentença. Cabe aos árbitros e às Câmaras de Arbitragem zelar pelo estrito cumprimento das leis que regulam a arbitragem, evitando qualquer laivo de nulidade no curso do processo e protegendo assim a credibilidade dessa jurisdição alternativa. Procurar, neste momento, inspiração em decisões de Câmaras Arbitrais internacionais ou em jurisprudência estrangeira colhida em países com larga tradição arbitral para fundamentar a possibilidade de se estender os efeitos da arbitragem a terceiros que a ela não estejam contratualmente obrigados e que dela não queiram participar, significa pôr em risco o futuro da arbitragem no Brasil, acreditando que esta já tenha bases mais sólidas do que efetivamente tem.
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1.     Para análise e comentários sobre a sentença Isover Saint Gobain vs. Dow Chemical, v., i.a., Arnoldo Wald, A arbitragem, os Grupos Societários e os conjuntos de contratos conexos, in Rev. de Arbitragem e Mediação, ano 1, nr. 2, maio agosto 2004, pp. 31/59, Ed. Rev. Tribunais, São Paulo; Olivier Caprese, A arbitragem e os Grupos de Sociedades, in Rev. de Dir. Bancário, Merc. Capitais e da Arbitragem, ano 6, nr. 21, julho – setembro 2003, pp. 339/386, Ed. Rev. dos Tribunais, São Paulo.
2.     Collection of ICC Arbitral Awards, 1974 – 1985, Ed. Kluwer, p. 151 e sgs.
3.     Artigos 265 e seguintes da Lei nº 6.404, de 15.12.1976.
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Hermes Marcelo Huck, Master of Laws, LLM, pela University of California, Berkeley, mestre em Direito e doutor em Direito Internacional pela USP, é sócio sênior e fundador de Lilla, Huck, Otranto, Camargo, Advogados, professor titular da Faculdade de Direito da USP, bem como fellow, visiting scholar e professor de diversas instituições, no Brasil e no exterior. É membro do Instituto de Direito Internacional da USP, da International Law Association, e da Comissão Internacional do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP, dentre outros órgãos. Já foi árbitro indicado pelo Governo brasileiro, pela Câmara de Mediação e Arbitragem de São Paulo (FIESP), pelo Centro de Arbitragem da Câmara de Comércio Brasil Canadá, além de outras entidades. É também autor de vários livros, bem como de artigos, pareceres e textos jurídicos publicados e divulgados por revistas nacionais e estrangeiras.
 
Fonte: Direitoaoponto.com.br

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