Como solucionar controvérsias no uso do espaço exterior?

José Monserrat Filho *

“Toda nova atividade humana – que cria interesses e que, por conseguinte, pode gerar controvérsias – deve encontrar sua regulamentação jurídica equitativa e racional, sob pena de confusão e anarquia.”

Embaixador Ambrosini, da Itália, perante à Comissão Política ONU, em 12/11/1958
Ainda não se adotou um sistema internacional de solução de controvérsias relativas à exploração e uso do espaço exterior, mas já existem muitas pesquisas e propostas a respeito. A mais recente iniciativa neste sentido foi apresentada pelo Secretário-Geral da Corte Permanente de Arbitragem (CPA), Christian Kröner, na 178ª Reunião do Conselho de Administração da Corte, realizada no dia 12 de maio último.

Em carta dirigida em 29 de maio ao corpo diplomático sediado em Haia, Países Baixos, ele propôs a criação de um Grupo Consultivo de juristas especializados para estudar a necessidade de um mecanismo de solução de litígios surgidos das atividades espaciais dos Estados e organizações não-governamentais. A idéia, a ser apreciada na próxima Reunião do Conselho Administrativo prevista para outubro deste ano, expressa “a decisão política da CPA de fortalecer o sistema internacional de solução de controvérsias e assim contribuir para consolidação do Estado de Direito”.

Kröner assim justifica sua proposta: “A proliferação, ocorrida nos últimos anos, das formas de uso e dos tipos de operadores do espaço exterior, em parte devido à comercialização das atividades espaciais, é tal que a probabilidade de surgirem controvérsias eles aumentou de forma significativa. Isto está vinculado, em particular, à crescente participação das empresas privadas nas atividades espaciais”.

Ele argumenta com quatro exemplos:
# No final de 2009 e início de 2010, serão realizados os primeiros vôos espaciais de natureza comercial, inteiramente financiados e operados por empresas privadas. Prevê-se, afirma Kröner, que o turismo espacial se tornará uma atividade mundial de grande escala.
# No setor das comunicações por satélite, as organizações intergovernamentais (OIG), em geral de natureza comercial híbrida, as antigas OIG agora privatizadas, bem como as empresas mistas de natureza híbrida – estabelecidas entre entidades comerciais e as OIG – operam ao lado das empresas privadas.
# A cooperação bilateral entre países em torno dos satélites de sensoriamento remoto já deu lugar à criação de empresas binacionais.
# Em muitos domínios das atividades espaciais, as parcerias entre entidades públicas e privadas já são ativas ou o serão em breve.

Para Kröner, “o número crescente de incidentes demonstra a necessidade de um sistema eficaz de solução de controvérsias, adequado aos operadores presentes e futuros do espaço exterior”. Ele lembra a colisão ocorrida em 10 de fevereiro deste ano entre um satélite desativado pertencente a um país e um satélite ativo pertencente a uma empresa privada. E frisa que hoje circulam em órbitas da Terra de cerca de 18 mil dejetos maiores de 10 cm, além de milhões de outros de menor tamanho. A seu ver, tendo em vista que a velocidade dos objetos no espaço pode atingir 27 mil km por hora, até os dejetos “infinitamente pequenos” são capazes de causar danos importantes e até perdas de vida.

Atualmente, constata Kröner, não há nenhum mecanismo de arbitragem que garanta de forma adequada a solução de controvérsias com força executória.

O Tratado do Espaço¹, de 1967, considerado a carta magna das atividades espaciais,
não estabelece nenhum procedimento de solução de controvérsias originadas em danos causados por objetos lançados ao espaço. Mas, em seu artigo 3º, ele enuncia o princípio geral neste assunto: “As atividades dos Estados-Partes deste Tratado, relativas à exploração e ao uso do espaço cósmico, inclusive da Lua e demais corpos celestes, deverão efetuar-se em conformidade com o direito internacional, inclusive a Carta das Nações Unidas, com a finalidade de manter a paz e a segurança internacional e de favorecer a cooperação e a compreensão internacionais”. Ou seja, não se admite solução de controvérsias que se oponha aos objetivos mais elevados de paz, segurança, cooperação e compreensão internacionais.

A Convenção sobre Responsabilidade Internacional por Danos causados por Objetos Espaciais², de 1972, reza que o pedido de indenização por dano será apresentado por via diplomática (artigo 9º) e que, em não havendo acordo entre as partes, a pedido de qualquer uma delas, se constituirá uma Comissão de Reclamação (artigo 14). Mas a decisão desta comissão somente será final e obrigatória se as partes assim admitirem (artigo 19). Ademais, sustenta Kröner, esta convenção engloba apenas um número limitado de danos e não aceita a participação de entidades privadas no processo, enquanto as OIGs não são reconhecidas como tendo competência própria no caso e devem ser representadas por seus Estados membros.

Acordo da Lua³, de 1979, não citado por Kröner, também prevê um sistema de solução de controvérsias. Pelo parágrafo 2º de seu artigo 15, um Estado-Parte pode solicitar a realização de consultas se tiver razões para supor que outro Estado-Parte não esteja cumprindo com as obrigações fixadas no acordo. E mais: “Cada Estado-Parte que participar das consultas deve buscar uma solução mutuamente aceitável para qualquer controvérsia e levar em consideração os direitos e interesses de todos os Estados-Partes”. Mas, pelo parágrafo 3º, “se as consultas não conduzirem a uma solução mutuamente aceitável, com a devida consideração aos direitos e interesses de todos os Estados, as partes interessadas devem adotar todas as medidas para solucionar a controvérsia por outros meios pacíficos, à sua escolha, adequados às circunstâncias e à natureza da controvérsia”. E ainda: “Se surgirem dificuldades por ocasião do início das consultas, ou se as consultas não permitirem que se alcance uma solução mutuamente aceitável, qualquer Estado-Parte pode solicitar a assistência do Secretário-Geral, sem procurar o consentimento de qualquer outro Estado-Parte na controvérsia, a fim de solucionar o controvérsia”. No entanto, o Acordo da Lua envolve somente os Estados e não se refere às OIGs, nem à participação de entidades privadas na solução de litígios.

Kröner comenta, por fim, que a eficácia do sistema de solução de controvérsias previsto na Convenção da União Internacional de Telecomunicações (UIT)4, entidade encarregada de coordenar as comunicações por satélite, “é consideravelmente limitada”, pois ele não tem força executória e não reconhece competência jurídica às OIGs. nem às empresas privadas, para atuarem em juízo.

Para Kröner, todos estes motivos levaram a Associação de Direito Internacional (Internacional Law Association5 – ILA) a propôr a arbitragem como “mecanismo de solução de controvérsias” em seu projeto de Convenção sobre a Solução de Controvérsias ligadas às Atividades Espaciais, apresentado em 1998. Naquele ano, ressalta Kröner, a necessidade de tal mecanismo ainda não era amplamente percebida, “em parte porque as empresas privadas se envolviam apenas em um conjunto limitado de atividades espaciais (sobretudo nas comunicações por satélite e nos lançamentos espaciais) e mesmo assim numa parte restrita do planeta. Hoje, a situação mudou e seguirá mudando, em conseqüência da entrada de muitos países em desenvolvimento e de empresas privadas em outras áreas de uso do espaço exterior”.

Kröner enfatiza ainda que a Convenção Relativa à Criação da Agência Espacial Européia6 (conhecida pela sigla em inglês ESA), de 1975, favorece claramente a constituição de um tribunal de arbitragem para resolver de forma final controvérsias entre a ESA e qualquer outra entidade, ou entre a ESA e uma empresa contratante.

Ele acrescenta que a importância e a pertinência da arbitragem encontram apoio também nos meio acadêmicos, que a consideram “um mecanismo privilegiado de solução de controvérsias”.

É justo assinalar que um dos precursores no estudo dos problemas relacionados com a solução de controvérsias na área espacial foi o renomado jurista alemão Karl-Heinz Böckstiegel. Em livro publicado em 1997, ele escreveu: “Há necessidade de novos esforços para desenvolver um sistema de solução de controvérsias entre Estados e organizações internacionais relativas às atividades espaciais. O objetivo de qualquer destes projetos deve ser a elaboração de textos que, mesmo sem satisfazer por completo o desejo dos acadêmicos, tenham a possibilidade efetiva de serem aceitos por grande número de Estados e empresas envolvidos naquelas atividades”.7

Kröner esclarece, ao mesmo tempo, que o Grupo Consultivo terá mandato, em primeiro plano, para avaliar de modo geral a necessidade de um mecanismo opcional, mas com força executória, destinado a solucionar controvérsias ligadas ao uso do espaço exterior por parte dos Estados, OIGs e empresas privadas, bem como para salientar as vantagens da arbitragem em tais casos. Em segundo lugar, lhe caberá elaborar um regulamento facultativo para este trabalho de arbitragem no setor espacial, a ser incluído na série de regulamentos facultativos da CPA.

Por fim, Kröner destaca que o Grupo Consultivo será composto, com base na
qualificação profissional e em obras reconhecidas em escala mundial, por juristas especializados em temas internacionais, levando-se em conta a dimensão geopolítica, ou seja o princípio da representação de todas as regiões do mundo.

Diante do exposto, parece-me conveniente que o Governo brasileiro:
1) procure participar diretamente do Grupo Consultivo e/ou acompanhar, com a devida atenção, os processos de definição e desempenho do Grupo Consultivo, para que expressem de maneira fiel os fundamentos expostos na proposta; e
2) promova um esforço diplomático para incorporar a esta iniciativa da CPA o Comitê das Nações Unidas para o Uso Pacífico do Espaço Exterior (Copuos) – em especial, o seu Subcomitê Jurídico –, que desde os anos 50 estuda, discute e encaminha soluções de consenso às questões legais decorrentes da exploração e uso do espaço exterior, como são os cinco tratados espaciais em vigor e as declarações específicas aprovadas pela Assembléia Geral das Nações Unidas.
Considero imprescindível a participação do Copuos na criação de qualquer sistema de solução de controvérsias vinculadas às atividades espaciais. Do contrário, ele certamente sofrerá grave desgaste em sua missão e imagem.
Referências:
1) Tratado sobre Princípios Reguladores das Atividades dos Estados na Exploração e Uso do Espaço Cósmico, inclusive a Lua e demais Corpos Celestes, aberto à assinatura dos países em 27 de janeiro de 1967, entrou em vigor em 10 de outubro daquele ano e conta hoje com 98 ratificações e 26 assinaturas (dados de janeiro de 2009).
2) Convenção sobre a Responsabilidade Internacional por Danos causados por Objetos Espaciais, aberto à assinatura dos países em 29 de março de 1972, entrou em vigor em 1º de setembro daquele ano e conta hoje com 86 ratificações e 23 assinaturas (dados de janeiro de 2009).
3) Acordo que Regula as Atividades dos Estados na Lua e em Outros Corpos Celestes, aberto à assinatura dos países em 18 de setembro de 1979, entrou em vigor em 11 de julho de 1984 e conta hoje com 13 ratificações e quatro assinaturas.
4) A Constituição e a Convenção da União Internacional de Telecomunicações (com seus anexos), adotadas pela Conferência Plenipotenciária Adicional, reunida em Genebra, Suiça, em 1992, incorporam as emendas aprovadas pelas Conferências Plenipotenciárias de Quito, Japão, em 1994; de Minneapolis, EUA, em 1998; de Marrakesh, Marrocos, em 2002; e de Antália, Turquia, em 2006;
5) Ver no site
6) Convenção Relativa à Criação da Agência Espacial Européia (ESA) foi assinada em Paris no dia 30 de maio de 1975. São 18 os seus membros: Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Países Baixos, Irflanda, Itália, Luxemburgo, Noruega, Portugal, Reino Unido, República Tcheca, Suécia e Suíça. O Canadá participa em alguns projetos da ESA, com base em um acordo de cooperação. Hungria, Romênia e Polônia são “Estados Europeus Cooperativos”. Estônia e Eslovênia assinaram recentemente acordos de cooperação com a ESA.
7) Böckstiegel, Karl-Heinz, The settlement of disputes regarding space activities after 30 years of the Outer Space Treaty, in Outlook on Space Law over the next 30 years – Essays published for the 30th Anniversary of the Outer Space Treaty, Editor-in-Chief: Gabriel Lafferranderie; Co-Editor: Daphné Crowther; Kluwer Law International, 1997, pp. 273-249.
* Vice-Presidente da Associação Brasileira de Direito Aeronáutico e Espacial, membro da Diretoria do Instituto Internacional de Direito Espacial, membro eleito da Academia Internacional de Astronáutica e, atualmente, chefe da Assessoria de Assuntos Internacionais do Ministério da Ciência e Tecnologia.
Fonte: SBDA.
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